segunda-feira, 30 de julho de 2007

Madrugada


Tela Starry Night, de Van Gogh, 1889

Sempre tenho usado este espaço para reflexões um pouco intimistas. Noutro dia, entretanto, surgiu a inspiração para um conto. Antes de publicá-lo, achei que devia submeter à apreciação de um escritor que admiro muito: Lucas Loch Moreira, do blog "Bola Esquerda". Depois de receber o OK dele, achei que podia seguir adiante. Eis aí:

- Tudo bem, doutor Herculano?
A figura franzina quase se esgueira inteiramente pela porta do grande escritório. Sob os óculos de fundo de garrafa, a visão obliterada por cerca de quatro graus de astigmatismo consegue ver a pançuda e proeminente figura atrás de uma mesa de madeira nobre, em um escritório acarpetado. Sobre a mesa uma balança estilizada e a imagem de Themis, a deusa da Justiça.
- Sim, doutor Eufrásio... em que posso servi-lo? - É preciso dizer que a fisionomia do doutor Herculano, juiz de direito da comarca, não era das mais pacientes. Doutor Eufrásio era um dos melhores advogados daquela pacata cidade, mas às vezes era um tanto aparvalhado.
- Desculpe a intromissão, mas eu precisei vir aqui perguntar...vai ser hoje?
O juiz imediatamente franziu a testa, em evidente sinal de reprovação. Como quem pensa estar sendo espionado, fecha a porta e responde, num tom de indignação, quase susurrado:
- O senhor não deve fazer perguntas a respeito disso! Não lembra o que todos combinamos?
- Sim, doutor Herculano, desculpe...é que eu mal posso esperar...
- Controle-se! Será nessa madrugada. Mas quando for a hora, todos saberão!
- Sim, doutor...desculpe.
- E esta conversa não existiu!
O esmirrado doutor Eufrásio sai da sala do juiz Herculano, um pouco envergonhado pela repreensão. Precisa aprender a controlar seus impulsos. No entanto, sente-se exultante e reconfortado por saber que seria hoje, ainda de madrugada. Desde a primeira vez, sente uma sofreguidão que se prolonga durante toda a semana, até o novo reencontro. Uma adrenalina indescritível perpassa todos os seus poros. Eufrásio, homem probo, decente, uma reserva moral do Direito naquela cidade, mal conseguiria dormir.

De madrugada, Eufrásio se levanta. A fiel esposa dorme o sono dos justos. No outro quarto, as crianças estão dormindo placidamente. Eufrásio veste a túnica preta e desce até a porta. Todos já estão esperando, nos fundos da Matriz da cidade. Apesar das túnicas e das máscaras, era possível reconhecer a barriga do doutor Herculano, a barba proeminente do padre Olavo, os óculos do vereador Demócrito... fazendeiros, advogados, a nata da pequena cidade.
- E aí, quem vai ser hoje?
- Vai ser o capataz do gerente Vetusto, do banco da província. Daqui a pouco ele desce pela rua...
De fato, não demorou muito para que surgisse na curva do beco um negro baixote, esturricado, completamente bêbado. Cantarolava uma música estranha, um pagode qualquer, quando viu seu caminho cercado por dezenas de homens vestindo togas negras, carregando tochas. A princípio, pensou ser uma alucinação da bebida. Tentou dar meia volta, mas atrás de si havia mais deles. Estava cercado. Não havia como correr, e mesmo que houvesse, estava tão bêbado que não conseguiria.
A primeira paulada foi dada pelo assessor da prefeitura, engenheiro Clóvis. Em seguida todos, um a um, desferiram pauladas, coronhadas, facadas, matando aos poucos o negrinho. O sangue e os gritos deixavam os nobres da sociedade ainda mais eufóricos e descontrolados.
Quase cinco horas da manhã quando o doutor Eufrásio volta para casa. Deita ao lado da esposa, que pontualmente às sete horas o acorda com um beijo. Após o banho, assenta-se à mesa do café enquanto a esposa, assustada, ouve no rádio sobre mais um cruel assassinato no beco atrás da Matriz.
- Eufrásio, você ouviu? Mataram o criado da casa da Candinha, mulher do gerente do banco...diz que foi tanta paulada que quase não deu pra reconhecer... que coisa terrível!
- É verdade, querida...nossa cidade está deixando de ser pacata...pode me passar o açúcar, por favor?

3 comentários:

Lucas Loch Moreira disse...

absurdamente e absolutamente genial...
assim descrevo o conto do Claudio.
ele mostra, de uma forma menos contemporânea, fatos que até hoje acontecem, principalmente em cidades interioranas como a nossa..
nem preciso parabeniza-lo.
tu sabe que é craque demais
um grande abraço

Levi Nauter disse...

Muito bom. Conheço pouco de cidades interioranas; vivi sempre na região metropolitana na qual a correria é extremamente estressante. Lendo-o pensei em alguns contos do grande Garcia Marquez.

Jóia.

Abraço,

Levi Nauter

Carlos André disse...

Tens de cuidar os tempos verbais - ora empregas o passado para descrever uma ação e a ação seguinte já está descrita por verbos no presente.