terça-feira, 27 de novembro de 2007

E a Praça é dos Livros...


Este texto foi proferido, como discurso, na Sessão Especial da Câmara de Vereadores, em 22 de Novembro, pela realização da I Feira Municipal do Livro de São Gabriel, de 23 a 25 de Novembro, numa parceria entre Associação Cultural Alcides Maya, Associação de Italianos, Alemães e Outras Etnias, Instituto Cultural e Educacional Harmonia Gabrielense, Universidade da Região da Campanha, Universidade Federal do Pampa e Secretaria Municipal de Educação. Participei da organização como presidente da ACAM, foi um momento extraordinário.

Corria o ano de 1866, se não falha a memória ou a boa-fé dos historiadores. A efervescência política da época não ficava nada a dever aos tempos atuais, quando a comunidade intelectual discutia, de forma acalorada, rumos novos para o Brasil, É neste cenário da movimentada Salvador que um grupo acanhado de estudantes tenta realizar uma manifestação pró-republicana, em plena praça central. A ação da polícia, tentando impedir o protesto, acaba por conferir à turba uma importância maior do que realmente tinha. É neste cenário que um jovem de vasta cabeleira negra ocupa o centro da praça e começa a declamar: “A Praça, a praça é do povo, como o céu é do condor, é antro onde a liberdade cria águias em seu calor”. O jovem poeta em questão é Castro Alves, e esta bela dedicação de amor que outorgou para sempre o domínio do povo sobre as praças, só chegou a nossos dias graças à existência dos livros.
E graças aos livros, mais uma vez, a praça pertence ao povo. Graças a uma mobilização modelar de forças vivas da comunidade cultural gabrielense, São Gabriel está ganhando um grandioso presente neste final de ano: a 1ª Feira Municipal do Livro de São Gabriel, evento que nasceu de uma forma que, certamente, é exemplo para outras iniciativas, pois veio à luz como resultado da união de esforços de entidades culturais que tiveram a grandeza de compreender que, separadas, não poderiam produzir o que estão realizando juntas... uma verdadeira celebração de amor ao poder criativo das palavras, à sua capacidade de traduzir vida, seja em prosa, seja em verso.
Trata-se de um fato nada desprezível a realização de uma festa que pretende celebrar a palavra em toda sua força, especialmente em tempos como os que estamos vivendo. Vivemos dias em que a palavra é desacreditada, não é cumprida, é solenemente desprezada. Nas profissões que fazem uso das letras, tornam-se prestigiados os que usam a palavra não para comunicar ou revelar, mas sim para ocultar. O não-dizer, o não-revelar, tornou-se quase uma regra nas relações sociais de hoje, que economizam tanto palavras quanto sentimentos. Na era da comunicação digital, faz-se de tudo um pouco, menos se comunicar. Completamente o oposto do que ensina uma obra que, não por acaso, mereceu ser apelidada de “Livro dos Livros”, onde nos é narrado que o próprio Deus, no ato de criar, fez uso da Palavra, dizendo “Haja luz”. O seu próprio Filho, segundo estas mesmas Escrituras, apresentava-se como “O Verbo Encarnado”. Ou seja, a Palavra não apenas descreve a realidade, mas cria e recria o mundo à nossa volta.
É para resgatar um pouco desta dimensão comunicativa do nosso dia-a-dia que surge esta Feira do Livro, disposta a discutir “Nossos Horizontes Literários”, como propõe o mote de sua primeira edição. Por isso, nada mais justo que seu patrono fosse um poeta com uma voz social bastante clara, que faz ouvir seu canto poético nas praças de todo o Rio Grande, a exemplo do Castro Alves que entronizou a poesia como soberana nas praças do passado: o nosso gabrielense Rossyr Berny, professor, escritor, editor e tradutor de renome consolidado, cuja reputação o precede e atrai para São Gabriel, nos dias da Feira, um sem-número de poetas e outros fazedores de literatura.
A praça é do povo, como o céu é do condor. E de 23 a 25 de novembro, o povo e sua literatura são parte indissociável da nossa Praça Fernando Abbott, na 1ª Feira Municipal do Livro. Que nossos melhores sentimentos nos conduzam!

sábado, 17 de novembro de 2007

"¿Por qué no te callas?"


ao centro, a ira real. Á direita, de costas, um coronel assustado

Eu sei, eu sei. Você já deve estar saturado de comentários a respeito da carraspana real passada pelo rei Juan Carlos no presidente venezuelano Hugo Chávez, durante a conferência ibero-americana em Santiago do Chile. Todos os jornais nestas últimas semanas trouxeram páginas e páginas a respeito do assunto, a televisão não se cansou de repetir a cena, e até mesmo o xingamento de Sua Majestade foi transformado em ringtone, o mais popular toque de celular da Espanha no momento. Todo o planeta viu o vexame do coronel venezuelano, que quis transformar um dos mais importantes encontros diplomáticos do mundo em um palco privilegiado para suas fanfarronices, como já tinha feito na ONU e em outros fóruns internacionais.
Como vocês bem sabem, tudo começou por causa de um discurso em que Chávez, como é de seu costume, despejou sua verborragia contra uma figura ausente: o já ex-primeiro ministro José Maria Aznar, a quem chamou de “fascista” por seu apoio à investida norte-americana na Guerra do Iraque. Foi quando o primeiro-ministro Zapatero exigiu que o presidente venezuelano demonstrasse mais respeito, com um argumento contundente: “Aznar, naquela ocasião, foi eleito pelo povo espanhol, e representava a todos os espanhóis, e por isso exigimos que seja tratado com respeito”. Visivelmente aturdido com a reprimenda, Chávez continuou a falar e falar e falar, quando o rei Juan Carlos esbravejou: “¿Por qué no te callas?”.
Não, não é a ira real de Juan Carlos, normalmente contido em sua posição de Chefe de Estado, que realmente impressiona, embora sua reação tenha sido a pedra de toque fundamental da cobertura da mídia a respeito do evento. O que realmente chama a atenção neste episódio é a diferença existente entre dois contendores involuntários desta refrega: o primeiro-ministro espanhol, Zapatero, e o fanfarrão chauvinista da Venezuela. Como vocês sabem, Zapatero também é de esquerda, ligado ao tradicionalíssimo PSOE (Partido Socialista Obrero Español), uma das siglas de maior influência na Internacional Socialista. Comunga, portanto, de muitos equívocos doutrinários do chamado comandante-em-chefe do bolivarianismo. No entanto, diante da fúria verbal de Chávez contra Aznar, foi capaz de demonstrar de maneira prática seu compromisso democrático. Chávez, certamente, esperava contar com o silêncio ou a conivência de Zapatero enquanto achincalhava a reputação de Aznar, que havia sido o principal adversário ideológico e político do atual premier espanhol durante as eleições de 2004. Na sua lógica distorcida, talvez Chavez pensasse até estar fazendo um favor ao colega espanhol, já que chamava de "fascista" a um duro oponente de Zapatero. Entretanto, Zapatero teve a grandeza moral de não permitir que um ex-representante de seu povo, ainda que antigo adversário seu, fosse achincalhado por um bufão das Américas em uma reunião intercontinental.
Esta é a distância que distingue Zapatero, um raro caso de esquerdista comprometido com a democracia, de Chávez e outros bufões da cena ibero-americana. E se o exemplo fosse outro? Se Chávez, ao invés de criticar Aznar, tivesse criticado, por exemplo, Fernando Henrique? Será que Lula pediria mais respeito a um ex-presidente brasileiro ou assistiria à agressão calado, e talvez até mesmo agradecido, com um indisfarçável sorrisinho de sarcasmo no rosto?
Esta é a distância que separa os estadistas dos usurpadores da consciência de suas Nações, os verdadeiros democratas dos chauvinistas ditatoriais, dos aproveitadores de plantão que apenas ocupam um período na História, mas nunca farão História verdadeiramente. A História sempre está do lado de quem sabe ouvir a voz do seu tempo e assumir a postura certa, como Zapatero. Ou, quem sabe, cunhar a frase certa, como o rei Juan Carlos.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

O D-us polifacético do Judaísmo


Um dos temas que tem prevalecido ao longo dos últimos dois mil anos como eterno ponto de controvérsia entre judeus e cristãos diz respeito à repulsa dos judeus diante da Doutrina da Trindade, a explicação da teologia cristã para conjugar a Unicidade de Deus com a divindade de Jesus Cristo. O judeu devoto, tanto do passado como do presente, que todos os dias treme ao recitar “Shemá Yisrael, Ad-nai Elohenu,, Ad-nai Ehad” (Escuta, Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é Um), parece apresentar profunda dificuldade em compreender um Deus que se manifeste de múltiplas formas.
Tal espanto seria legítimo se o próprio Judaísmo não tivesse, ao longo de sua história, através de seus sábios, produzido tantas e tão ricas especulações sobre a natureza de Deus, que coincidem profundamente com o conceito trinitário cristão. É evidente que um judeu jamais admitiria enxergar esse assunto desta maneira, principalmente porque todas as doutrinas rabínicas desenvolvidas na Idade Média sempre foram, de alguma forma, reativas ao Cristianismo. Por mais que doa admitir, um judeu devoto convive sempre com o paradoxo de professar uma fé antiga, mas que na verdade, teve seus parâmetros atuais estabelecidos depois do Cristianismo. O verdadeiro fundador do Judaísmo que hoje conhecemos não é Moisés, mas sim o Rabi Akiva, como bem nos lembra esta reflexão:

“Quando os rabinos da Antiguidade reescreveram à sua imagem e semelhança toda a Escritura e a história de Israel, descartando períodos inteiros como se jamais houvessem existido, ignorando trechos extensos de antigos escritos judaicos, inventando novos livros para o cânone do judaísmo, fizeram mesma coisa que condenavam em Jesus: modificaram o que tinham recebido, à luz do que se propunham a oferecer” (Jacob Neusner, in Jews and Christians: The Myth of a Common Tradition, página 102).

Tendo por base o fato de que o Judaísmo ortodoxo dos dias atuais é uma religião inteiramente reativa, e neste sentido, dependente, do cristianismo, cabe analisar desapaixonadamente algumas das mais conhecidas refutações judaicas ao cristianismo, tendo por base algumas de suas mais caras reflexões sobre a natureza de D-us e do Messias.

1 – O Messias é um ser humano comum, sendo inaceitável a doutrina do Messias como co-existente com Deus:

Bem, o Judaísmo convive com o dilema de um de seus rabinos, rejeitado pela tradição vencedora, ter afirmado: “A alma do Messias foi criada pela vontade de Deus. Essa alma existia antes da criação do mundo”. Trata-se de Jacó Frank, no livro “Tratado sobre os Dragões”.

2 – O Espírito Santo é uma invenção teológica.
Bem, o fato é que o Espírito Santo cristão pode encontrar seu paralelo judaico na figura da Shekhinah. O livro “The Sages (Os Sábios)”, de Ephraim Urbach, traz uma análise esclarecedora. Para os grandes rabinos do passado, segundo Urbach, Shekhinah não tinha existência própria, sendo parte de D-us, ou seja, a presença de D-us no mundo (exatamente como o Espírito Santo cristão). Mas essa visão foi sendo modificada no século XI, quando surgiram referencias a Shekhinah como tendo personalidade própria (Exatamente como o Espírito Santo). Na verdade, o Judaísmo vai muito mais longe que os cristãos ao atribuir à Shekhinah um caráter feminino. Na prática, Shekhinah tornou-se a “deusa” do Judaísmo, algo que jamais seria encarado com naturalidade pela ortodoxia cristã com relação ao Espírito Santo (muito embora alguns moderninhos queiram dar algum significado para o fato de Ruach há Kodesh, o nome do Espírito Santo em hebraico, ser um substantivo feminino). Para os cristãos, Deus não pode ser considerado “masculino” ou “feminino”, pois tais designações pertencem ao universo da Criação, não do Criador.

3 – Conceituar Deus como possuidor de três “personas” é Avodá Zará (pecado de idolatria)
Alguns judeus convivem com o paradoxo de condenar a Doutrina da Trindade cristã enquanto preferem ignorar o fato de que no chamado “Livro do Esplendor” (Zohar), veremos várias e várias especulações a respeito de Deus, cujo caráter é analisado com base naquilo que o livro chama de “divisão tripartite da alma”: nephesh, ruach e neshamah., justamente três “personas”, “manifestações” do caráter de D-us, a exemplo do que preconizara Tertuliano em seu desenvolvimento da Doutrina da Trindade.

Este fato deve nos atentar para aquilo que os sábios rabinos signatários da declaração “Dabru Emet” já manifestaram, a despeito da contrariedade da maioria dos judeus ortodoxos da atualidade: cristãos e judeus adoram o Mesmo Deus, e apesar de vivenciaram tradições separadas pela cultura e pela história, em ambas as tradições é possível encontrar fragmentos coincidentes da mesma Verdade, que aponta para um Deus multiforme, Uno, e também para a pessoa divina de Jesus.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Paulo e o Judaísmo: uma relação ambígua




Rotineiramente, o judaísmo ortodoxo tem uma relação tensa com um dos principais pregadores do Cristianismo, em certos casos mais tensa até mesmo do que com o próprio Jesus. Trata-se do apóstolo Paulo, cujas cartas são as primeiras referências doutrinárias e teológicas nascidas no cristianismo primitivo.
A visão ortodoxa tradicional costuma apresentar Paulo como um judeu helenizado, que teria promovido a fusão do cristianismo nascido em Jerusalém com elementos do paganismo greco-romano, a cujo ambiente cultural estaria habituado. Mesmo o caráter judaico de Paulo é questionado, uma vez que seu natalício é situado em Tarso.
No entanto, um exame aprofundado das cartas paulinas fará perceber uma profunda reverência ao judaísmo e aos judeus, em que pese as interpretações distorcidas da atualidade a seu respeito. Extraímos para observação, apenas alguns excertos onde este fato surge de forma auto-evidente.

"Não te glories contra os ramos; porém, se te gloriares, sabe que não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz, a ti" (Romanos 11.18). Aqui se está falando do cristianismo como um ramo cuja raiz provém dos judeus.

DIGO, pois: Porventura rejeitou Deus o seu povo? De modo nenhum; porque também eu sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim. Deus não rejeitou o seu povo, que antes conheceu. Ou não sabeis o que a Escritura diz de Elias, como fala a Deus contra Israel, dizendo: "Senhor, mataram os teus profetas, e derribaram os teus altares; e só eu fiquei, e buscam a minha alma?" Mas que lhe diz a resposta divina?"Reservei para mim sete mil homens, que não dobraram os joelhos a Baal".

Há diversos outros contextos em que fala com orgulho da sua linhagem e de seu aprendizado como parush, nos quais via um zelo santificante pela Palavra de Deus.

Há, portanto, uma falsa dicotomia entre o que alguns chamam de "cristianismo paulino" e "cristianismo de Tiago", este ligado a Jerusalém. Em ambos os casos, Jerusalém é, como disse Paulo, a "raiz".