segunda-feira, 23 de julho de 2007

Bloom, Shakespeare e o Brasil: sobre inação e esperança


Hamlet e Horácio no cemitério, 1839 - Eugène Delacroix (França/1798-1863)


Há tempos venho refletindo sobre as razões de uma evidente prostração cívica que vem se abatendo sobre o povo brasileiro no atual governo. É nítido o estado de consternação profunda da maioria da população diante da sucessão incontrolável de escândalos de corrupção, incompetência, despreparo administrativo e político dos atuais mandatários da República (?). no entanto, as mesmas desgraças que, em outros povos, teriam estimulado as pessoas a ir às ruas, aqui está produzindo um efeito violento de apatia, quase como o estado de ânimo do indivíduo melancólico, que se tranca no quarto de sua tristeza para não ver a luz do dia. Um país em depressão profunda. Como chegamos a isto?
Os efeitos dos escândalos que quase retiraram o segundo mandato do presidente Lula, ainda ecoam como um torpor sobre a consciência da Nação. A absoluta falta de apuração dos fatos por um congresso que se auto-enxovalhou, levando o eleitor a “não trocar o certo pelo duvidoso (como, aliás, propunha um dos jingles da vitoriosa campanha de Lula) parece ter conduzido o cidadão comum a um estado de letargia. Sucedem-se, um a um, os bois do senador Renan Calheiros, as bravatas de Roriz, a posse de um suplente já intrincado em maus negócios, as relações promíscuas de senadores com empreiteiros, uma comissão de ética disposta a absolver sem checar, e nada disso parece capaz de provocar alguma reação, ainda que mínima. E isso quando é evidente que o cidadão comum abomina tudo isto que está acontecendo.
Uma reflexão de um dos mais notáveis e explosivos críticos literários de todos os tempos nos parece conduzir a uma resposta, ou pelo menos, a um caminho em direção a ela, ainda que de forma totalmente involuntária e acidental. O genial escritor Harold Bloom, professor da Universidade de Yale, ao analisar a obra do imortal bardo inglês Willian Shakespeare, vê em sua peça Hamlet o arquétipo definitivo de todo o drama da existência. A peça que narra a trajetória de um príncipe instigado pelo fantasma do pai a vingar sua morte traz um personagem central tão rico e tão profundo que a famosa cena da caveira (“pobre Yorick, eu o conhecia bem...”) virou clichê no teatro e na psicanálise. É Bloom quem procura desvendar por que o personagem é tão arredio a agir, e se revolta cada vez que é interpelado pelo fantasma de seu pai a matar o próprio tio: “Hamlet acha humilhante ser chamado a corrigir um mundo que está fora dos eixos inevitavelmente. Saber é inação. A ilusão é que nos leva à ação. A hesitação é sinônimo de consciência, e Hamlet é o personagem mais auto-consciente de toda a história da literatura”.
Esta incrível assertiva, além de nos traduzir a natureza de toda a melancolia da civilização ocidental, nos traz de volta ao Brasil de nossos dias. Os jovens que foram às ruas na época do “Fora Collor”, o fizeram ainda imantados pela ilusão de moralizar o país, e acreditavam que para isso, bastava apenas colocar as pessoas certas no lugar certo, dando o poder aos éticos, aos puros. No entanto, desde que o escândalo do mensalão revelou a verdadeira natureza de algumas vestais de pureza dos anos anteriores, o povo brasileiro parece sem reação. A ilusão foi-se embora, e no seu lugar ficou uma realidade que o cidadão comum simplesmente não pode suportar.
Se “saber é inação”, como propõe Harold Bloom, o povo não sente-se mais compelido a reagir por saber que não há mais o bem absoluto. Este abandono da esperança é um traço profundamente sombrio dos nossos dias...falta ao brasileiro entender que a esperança pode, sim, ser uma forma de saber, e não apenas uma vaga incerteza.
Aliás, este é o falso embate que por anos tem dividido religiosos e cientistas: a fé x a razão. Esta dicotomia é enganosa porque sempre supõe que a razão é o terreno do conhecimento, e a fé, o terreno da ilusão. Na verdade, a única convergência entre o aristotélico Agostinho de Hipona e o platônico Tomás de Aquino é o reconhecimento da fé como uma forma de conhecimento, tanto quanto a razão. Fé e razão não são necessariamente forças contrárias, mas sim formas diferentes de conhecimento. Pela razão se chega ao conhecimento das verdades da natureza, e pela Fé se chega ao conhecimento das verdades do espírito. É Paulo de Tarso quem afirma: “a fé é o firme fundamento das coisas que não se vêem”.
Saber não precisa, necessariamente, ser inação. Nem tudo aquilo que está palpável aos olhos encerra toda a existência. Saber que as ilusões são enganosas, pode finalmente nos libertar em direção a uma realidade informada, onde cada um é responsável pelos seus atos, e onde é possível, sim, ter esperança. Não em uma espécie de “novo homem”, mas em consciências livres, capazes de tocar o solo da realidade e, ainda assim, caminhar altivas.
“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”(João 8.32)...

2 comentários:

Levi Nauter disse...

Gostei do texto, essencialmente pela intertextualidade com vários campos do saber.

Bloom foi uma grande sacada. Devo dizer que não captei (aí uma das minhas muitas fraquezas)donde retiraste o trecho citado. Contudo, posso dizer que estou gostano bastante de ler "Onde encontrar a sabedoria?".

Acho que tens demorado a escrever. Vamos lá tchê!

Abraços,
Levi Nauter

Ragueneau disse...

Olá pastor, como vai?

Não aconselharia o senhor a usar Harold Bloom [que é fã e não critico de Shakespeare, e além do mais ele apresenta um Shakespeare que não existe, problema de fã, sabe?].Percebi também algumas incoerências ou desatenções que o senhor cometeu ao falar de filósofos. Para citar apenas uma: o senhor disse que "Na verdade, a única convergência entre o aristotélico Agostinho de Hipona e o platônico Tomás de Aquino é o reconhecimento da fé como uma forma de conhecimento, tanto quanto a razão.
Na verdade, quem é aristotélico é Tomás de Aquino e não agostinho,que é platônico. E essa relção entre fé e razão não é tão simples como o senhor apresentou. Aconselho ao senhor a leitura de Kierkegaard [a obra Temor e Tremor].
Mas, salvo os muitos equivocos e confusões tanto em literatura quanto em filosofia, gostei muito do seu blog. É identificávelmente cristão-evangélico.

Abração